
Mencionei no artigo anterior, publicado há duas semanas aqui neste mesmo espaço, que o Brasil é um país pródigo em políticas de cotas. Ao contrário do que se pensa costumeiramente, as cotas são implementadas pelo Estado brasileiro desde nossa Independência, muito embora só há pouco o tema tenha entrado nas pautas de discussão. Aos que não leram aquele artigo, esclareço que foi o primeiro, e este o segundo, de uma pequena série de três textos sobre as históricas cotas brasileiras. No anterior, mencionei as iniciativas de Dom Pedro I para subsidiar traslado, assentamento e instalação de europeus no Brasil, bem como a resistência de latifundiários luso-brasileiros, o que levou à suspensão dessa política de 1830 até 1848, quando viria a ser retomada de maneira descentralizada e privatizada.
Pois em 1848, quando Dom Pedro II já estava à frente do Império, editou- -se a Lei Geral nº 514 que concedeu faixas de terra às províncias, com a condição de que estas terras fossem "exclusivamente destinadas à colonização" e não fossem "roteadas por braços escravos". O objetivo era dividir com os governos provinciais a tarefa da colonizar o Brasil, mas impedir que fossem distribuídas para não brancos. Além disso, o Império concedia crédito subsidiado para que latifundiários custeassem o aliciamento e o transporte de europeus para trabalhar principalmente nas lavouras de café. De 1850 a 1889, foram criadas 250 colônias europeias no Brasil, destas, 197 particulares.
Em 1850, a Lei nº 601, conhecida Lei de Terras, estabeleceu que só teriam acesso à propriedade aqueles que já estivessem na posse de terras, ou que pudessem pagar à vista para comprá-las do Império, numa arquitetura legal concebida justamente para impedir que negros e índios viessem a ser proprietários. Essa mesma lei, ainda, autorizou o Governo Imperial a usar o produto da venda de terras para custear a formação de mais colônias de europeus no Brasil. Na mesma linha, o Decreto n° 3.784 de 1867 estabeleceu que os colonos recém-chegados seriam recebidos em "edifícios especiais", d'onde seriam conduzidos a seus lotes, cujo pagamento se daria em cinco prestações, a contar do fim do segundo ano de estabelecimento, além da garantia de lotes extras para os filhos que quisessem se estabelecer separadamente dos pais. Nessa leva foi criada a Quarta Colônia, à época chamada de Colônia de Silveira Martins, em 1877.
Aliás, Gaspar de Silveira Martins era um político rio-grandense que se notabilizou por defender subsídios à imigração europeia, sobretudo a italiana. Não desconheço as dificuldades por que passaram os imigrantes europeus. Assim como o primeiro, este texto não deve ser interpretado como acusatório ou pejorativo. Não há demérito algum em ter recebido cotas no passado. Há demérito, sim, em fingir que elas não existiram para negá-las agora a grupos que delas nunca antes se beneficiaram. Uma questão de coerência e justiça histórica. Só isso.